O texto a seguir é de autoria de Aimée Feijão, graduada e mestre em direito pela Universidade de Brasília (UnB). Ela trata de alguns temas que já foram aqui vagamente mencionados nas postagens sobre o “Professor Anacrônico” e outras. Trata-se de uma parte adaptada da dissertação de mestrado da Aimée Feijão. Em breve, como prometi na postagem sobre doutrina jurídica e pesquisa em direito, farei uma postagem descrevendo algumas pesquisas de ponta no Brasil e no mundo na área de direito.
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Por Aimée Feijão
A concepção do conhecimento como algo estático e fragmentado não se
coaduna com o contexto socioeconômico e cultural em que nos encontramos
inseridos; este se rege pelos imperativos da dinamicidade[1], o que demanda um
conhecimento também dinâmico. A complexidade da vida moderna é
incompatível com um modelo de ensino que perpetua a compartimentalização do
conhecimento. Um ensino fragmentado atrofia as possibilidades de compreensão e
reflexão sobre a totalidade dos fenômenos sociais. Existe, segundo Edgar Morin,
uma inadequação profunda entre a sectarização dos saberes entre disciplinas e a
realidade, que nos apresenta problemas polidisciplinares[2].
Esse cenário é incompatível com um método de ensino focado na mera
transmissão de conhecimentos por parte do professor seguida pela apreensão do
máximo possível de informações e dados pelos alunos.
Se essa incongruência entre a realidade e a forma como se produz o
conhecimento é observada nas ciências exatas, muito mais notável o é nas
ciências humanas, cujo objeto encontra-se em constante mutação, em virtude de
este consistir em uma conexão entre vida, expressão e compreensão. A
humanidade, afirma Wilhelm Dilthey, enquanto condição de objeto das ciências
humanas, “não
surge senão na medida em que estados humanos são vivenciados, em que esses
estados ganham expressão em manifestações vitais e essas expressões são
compreendidas. Com efeito, essa conexão existente entre vida, expressão e
compreensão não abarca apenas gestos, expressões faciais e termos por meio dos
quais os homens se comunicam [...] A unidade psicofísica da vida também é
conhecida por si mesma por meio da mesma relação dupla entre vivenciar e
compreender. [...] Desse modo, a conexão entre vivência, expressão e
compreensão mostra-se por toda parte como o próprio procedimento, por meio do
qual a humanidade existe para nós como objeto das ciências humanas. As ciências
humanas estão fundadas, pois, nessa conexão entre vida, expressão e compreensão” [3].
Essa conjunção de fatores é sentida sobremaneira na ciência jurídica,
visto que as relações humanas, sobre as quais o Direito pretende exercer certa
normatividade, se desenvolvem de forma complexa, exigindo do profissional que
porventura atue nessa área a habilidade de agir com sensibilidade e senso
crítico diante das variadas situações que venham a se desenvolver.
Para atender a essa expectativa, a educação deve ter como propósito
desenvolver nos estudantes a competência e habilidade de aplicar seus
conhecimentos em meio à dinamicidade e instabilidade das circunstâncias
fáticas, de desenvolver o que Knowles chama de “lifelong self-directed
learning” [4] ou aprendizado contínuo.
Na seara do ensino jurídico, constata-se uma insatisfação de longa data
com o método tradicional de ensino, o que suscita discussões a respeito da
estruturação curricular e metodológica do curso.
Atualmente a maioria das faculdades de Direito no Brasil reproduz, ainda
que de forma sutil, o ensino originado na Universidade de Bolonha[5], que seguia o modelo da lectio escolástica[6]. Nessa relação
educacional, o estudante posicionava-se de forma passiva frente ao professor,
presumidamente detentor de todo o conhecimento; cabia ao discente, portanto,
apenas absorver os ensinamentos do grande mestre. Observa-se, ainda, que o foco
do ensino estava na lei, possuindo mínima conexão com a realidade social.
Mais de nove séculos se passaram e a educação jurídica brasileira ainda
possui resquícios do método escolástico. Pautada em um modelo tradicional,
confere ao docente o papel de principal ator do processo educacional, peça
transmudada em monólogo que transforma os alunos em meros expectadores muitas
vezes desinteressados.
O quadro em tela constitui o reflexo da generalizada percepção
formalista do Direito. O “formalismo jurídico” é uma categoria amplamente
utilizada na Sociologia Jurídica, na História do Direito e na Filosofia
Jurídica e não existe para ela uma conceituação fechada[7]. Nesse esteio, valemo-nos
do conceito esboçado por Daniel Bonilla[8], segundo o qual o
formalismo jurídico identifica sistema jurídico com a lei; considera que o
sistema normativo é completo, coerente e fechado; capaz, portanto, de fornecer
respostas únicas a todos os problemas apresentados pela comunidade política.
A educação jurídica formalista, então, reforça e reproduz o conceito de
direito formalista, tendo como pilares o enciclopedismo curricular, a
memorização e o conceitualismo. Os
currículos são compostos por um número alto de matérias obrigatórias de modo a
garantir que os estudantes conheçam todas as criações do legislador. Iguala
conhecer Direito à capacidade de reproduzir na íntegra e acriticamente os
conteúdos normatizados[9].
Imperativa se faz a mudança desse quadro, vez que a atuação do jurista é
mais complexa do que a memorização de textos legais. O interpretar da norma
jurídica não se esgota na mera reprodução de máximas imutáveis e abstratas, mas
é atividade que se perfaz a partir da análise da norma abstratamente concebida
face às peculiaridades do caso concreto. O instrumento normativo desvinculado
de um contexto fático apresenta inúmeras potencialidades. Assim sendo, cabe ao
jurista conformar a norma a um de seus muitos significados para a solução do
caso concreto ou até mesmo questionar as próprias bases morais, culturais e
políticas que legitimam essa norma. Essa atividade hermenêutica extremamente
complexa não é possível ser realizada com base na simples reprodução de
conhecimentos. Para essa análise crítica, é necessário um ensino também crítico
e desafiador, que estimule o estudante e o torne o centro do processo
educacional; a partir desse empoderamento discente, contribuir-se-á para a
formação de profissionais capazes de analisar criticamente o meio social e as
estruturas jurídicas que tentam discipliná-lo, provendo soluções coerentes à
resolução do caso concreto com o qual se depare.
[1] Atestando essa realidade, Zygmunt
Bauman elegeu a fluidez como a principal metáfora da modernidade: Cf. BAUMAN
“[os fluidos] diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com
facilidade[...], não fixam o espaço nem prendem o tempo[...]os fluidos não se
atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a
mudá-la[...] Essas são as razões para considerar ‘fluidez’ ou ‘liquidez’ como
metáforas adequadas quando queremos captar a natureza da presente fase, nova de
muitas maneiras, na história da modernidade ” In: Modernidade líquida. Pg. 8-9.
[2] MORIN, Edgar. A
cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Trad. Eloá
Jacobina. 8a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. Pg.13.
[3] DILTHEY, Wilhelm.
A construção do mundo histórico nas ciências humanas. Tradução Marcos Casanova.
São Paulo: Editora Unesp, 2010. Pg 28-29.
[4] “Lifelong learning”, termo que
traduzimos livremente como “aprendizado contínuo”, é apresentado por Knowles
como o princípio fundamental de toda a educação; este consiste na habilidade de
buscar o conhecimento de forma autônoma e independente. No contexto atual de
fluidez da produção de conhecimento, insuficiente se mostra a mera apreensão de
conhecimento, vez que este se encontra em constante mutação; o importante é
desenvolver a competência de “aprender a aprender”.
[5] BERMAN, Harold J.
Direito e revolução: a formação da tradição jurídica ocidental. São Leopoldo:
Unisinos, 2006. Pg.166.
[6], Ver BERMAN In:
Direito e revolução. pg. 167-169; e HEGEL In: Princípios da filosofia do direito.
pg. 25-26.
[7]
Duncan Kennedy. Legal Formalism. In: SMELSER, Neil; BALTES, Paul (ed).
Encyclopedia of the social & behavioral sciences. vol 13. Elsevier: 2001.
Pg 8634.
[8] BONILLA, Daniel. El formalismo jurídico, la educación jurídica y la
práctica profesional del derecho en latinoamerica. In Helena Olea (ed.).
Derecho y pueblo Mapuche, Universidad Diego Portales, Chile, 2013. Pg. 262.
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