domingo, 11 de dezembro de 2016

O papel do orientador na vida acadêmica

O que deve fazer um orientador, na graduação e na pós-graduação? O que é um mau orientador? O que não deve fazer um orientador? Qual o papel e a importância do orientador na vida acadêmica e profissional do estudante? Nesta postagem tratarei dessas questões, considerando minha própria experiência na área de direito e relatos de colegas de áreas como ciência da computação, ciência política e outras. Agradecimentos especiais a Cleyton Rodrigues e a Jocsã Carlos.

Para simplificar a exposição e torna-la mais sistemática, falarei sobre boas e más práticas de orientação, separando o bom do mau orientador.

O Bom Orientador – ou boas práticas de orientação

1. Em particular na graduação, mas também na pós-graduação, o bom orientador ajuda a definir e moldar apropriadamente o tema no qual a estudante está interessada, pois ele tem a experiência e o conhecimento para indicar os caminhos promissores e os meios de tornar a pesquisa viável, se for – se não for viável, isso também deve ser alertado por ele. Dada a grande quantidade de informação, ter um mentor no meio de tantos artigos, livros e novas descobertas é uma necessidade para conseguir se encontrar.

2. É importante que a estudante tenha uma ideia clara do objetivo geral de sua pesquisa e o orientador tem muito a contribuir nesse sentido. O bom orientador não faz o trabalho pelo aluno, mas age como uma espécie de guia ou facilitador, ajudando a estudante a desenvolver sua própria autonomia intelectual.

3. O bom orientador é acessível e aberto ao diálogo com o orientando, realizando, ao menos eventualmente, reuniões e conversas para tratar do tema da pesquisa. Orientador não é professor particular, mas seu trabalho envolve também dar atenção ao orientando e leva-lo a sério – esse trabalho sério em conjunto às vezes leva a grandes realizações científicas. Por isso, aliás, não só o bom orientador, mas também o bom orientando aceitam críticas e diálogo acadêmico, com a humildade de quem busca por respostas e resultados científicos em parceria.

4. Compreender a humanidade do orientando, que, por sua vez, também deve compreender a humanidade do orientador: entender que cada um é uma pessoa cuja vida vai além da esfera acadêmica e profissional. Às vezes o orientando ou o orientador pode estar passando por algum momento pessoalmente difícil, como problemas emocionais, familiares ou financeiros, e sem uma compreensão mútua dessas questões, a parceria entre os dois estará fadada a ser repleta de tensões e fracassos. Ocorre às vezes de o orientando e o orientador criarem verdadeiros laços de amizade.

5. O bom orientador conhece seu campo de pesquisa, com o qual (preferencialmente) o orientando também tem afinidade, e possui contatos na área. Dessa forma, o bom orientador também ajuda a orientando na criação e no aumento de sua rede de contatos profissionais, colocando-o em interação com outros pesquisadores do Brasil e do mundo.

O Mau Orientador – ou más práticas de orientação

1. O mau orientador escolhe o tema e define os passos da pesquisa do orientando, o que acaba prejudicando na motivação do estudante para com a pesquisa, já que agora ele está fazendo algo que se assemelha a suas obrigações escolares, não mais algo que escolheu por interesse próprio.

2. O mau orientador é esquivo, raramente disponível para dar atenção ao orientando, sempre ocupado com toda a sorte de atividades que não seja a orientação: não responde e-mails, não atende telefonemas, nem faz reuniões, muito menos se dar ao trabalho de ler o andamento da pesquisa do orientando. Tive conhecimento de um caso em que a pessoa só falou duas vezes com o orientador ao longo de dois anos de mestrado, sendo que uma dessas vezes deve ter sido na defesa.

3. Trata o orientando como máquina: exige trabalhos e mais trabalhos em prazos extenuantes, e não aceita falhas. Descontente, briga e reclama com o orientando.

4. O mau orientador explora o orientando, de modo a fazê-lo realizar trabalho que deveria ser do orientador como professor e pesquisador, fazendo-o dar aulas e mais aulas, e assinando como coautor em artigos nos quais não participou.

5. Arrogante e de ego inflado, o mau orientador não aceita ser criticado por um “mero” estudante de graduação ou pós-graduação. Dono de um Ph.D. e pós-doutorados, ele se sente acima dos seus orientandos, em competência acadêmica.
Agradecimento pessoal

Por fim, quero fazer um agradecimento pessoal a todos os meus orientadores: os professores Torquato Castro Júnior, Gustavo Just e Fred Freitas. Eles foram e são fundamentais em meu desenvolvimento acadêmico e profissional, e muitas vezes me motivaram a persistir, quando eu queria desistir. Muito obrigado.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Diminuindo as deficiências da formação jurídica para pesquisa

Em outras postagens, falei de alguns erros amadores na produção acadêmica e como evita-los, argumentei que as pesquisas doutrinárias (no Brasil, conhecidas como dogmática jurídica) não devem ser o paradigma da pesquisa em direito, dei exemplos de pesquisa de ponta em direito, e dei algumas dicas práticas para quem deseja fazer pesquisa em direito. Tenho tentado com isso orientar as pessoas que pensam em seguir a carreira da docência e da pesquisa em direito, ou já a seguem, para direções que considero frutíferas. Apesar disso, minha penúltima postagem sobre as desvantagens de se seguir essa carreira no Brasil foi a de maior número de visualizações, ultrapassando 1400 até hoje.

Para aqueles que, cientes das várias dificuldades, estão dispostos a trilhar seriamente o caminho do ensino e da pesquisa em direito, porque não se veem fazendo outra coisa com a mesma satisfação, indico aqui algumas formas de atenuar as deficiências da formação jurídica típica no que diz respeito à pesquisa.

1. Aproximar-se de quem sabe: Ter a orientação de especialistas ou de pessoas competentes é muito útil para desenvolver as habilidades e conhecimentos para a pesquisa – mas você deve desenvolver também sua própria autonomia intelectual, pois o pesquisador precisa ter uma postura proativa, ser capaz de pensar por conta própria, criar e resolver seus próprios problemas. Buscar aprender com quem tem experiência e reconhecimento. Aqui, há duas possibilidades não excludentes: (a) pesquisadores da área de direito e (b) pesquisadores de outras áreas. Como a área de direito tem deficiências próprias, os pesquisadores experientes também não estão isentos dos problemas, e, por isso, é importante identificar os melhores do ramo: veja se ele acompanha o que é feito na área, se tem publicações recentes e em inglês, se publica em periódicos relevantes (e não apenas em livros editados pelo seu próprio círculo social), se tem contatos regionais, nacionais e internacionais no meio acadêmico, se realiza atividades de pesquisa regularmente, se leva a sério você e os orientandos de graduação e pós-graduação que ele tem (lembre-se: isso é parte do trabalho dele). O mesmo vale para identificar bons pesquisadores de outras áreas, mas a principal vantagem desses é que geralmente têm mais experiência e tradição com pesquisa séria, incluindo instrumentos eficazes de investigação. É sempre bom conferir o Currículo Lattes do pesquisador, além de ver se ele tem um site pessoal acadêmico.

Uma observação necessária: a área de direito é repleta de louvações e homenagens, que podem passar a impressão de que um pesquisador é mais importante e competente do que realmente é. Fique atento e não se deixe impressionar facilmente.

2. Cursos online de qualidade: Há algumas plataformas de cursos online de alta qualidade, oferecidos por reconhecidas universidades internacionais, como MIT e Stanford, e também por empresas, como a Microsoft. As duas plataformas que mais recomendo são a Coursera e a Edx. Os cursos são gratuitos, mas, para alguns, é possível pagar para receber uma certificação oficial autenticada. É como cursar à distância uma disciplina numa dessas instituições. Esses cursos são boas formas de adquirir conhecimentos, habilidades e competências úteis para sua pesquisa ou para sua formação como pesquisador, e que lhe foram negados pela sua faculdade de direito, por deficiências estruturais. Separei abaixo alguns cursos que podem ser de interesse nesse sentido; note a data de início ou se é “self-paced” (que segue seu ritmo):











É possível também cursar disciplinas presencialmente em outros centros da sua universidade.

VEJA TAMBÉM: Dicas práticas para fazer pesquisa séria em direito

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Podcast sobre Pesquisa em Direito: Entre Passado e Futuro


Fui convidado por Natália Sulman, do portal FiloVida, para falar sobre pesquisa na área de direito, contrastando as pesquisas tradicionais com as novas perspectivas na pesquisa.

O resultado foi um podcast de 18 minutos que pode ser acessado no link abaixo:



Ps: Logo no início do áudio afirmo erroneamente que as pesquisas doutrinárias são conhecidas como “dogmática jurídica” nos países de Common Law. Na verdade, eu queria ter dito “Civil Law”. Fiz uma confusão na hora.

sábado, 1 de outubro de 2016

Não vale a pena ser pesquisador em direito

Nesta postagem, explicarei por que, considerando os prós e os contra, ser pesquisador em direito, no Brasil, é o pior caminho que alguém da área de direito pode escolher.

Não quero desestimular os interessados em pesquisa, mas dar a eles uma visão realista das dificuldades que encontrarão e do tipo de coisa que precisarão levar em consideração.

Embora a existência de pesquisa na área de direito seja importante (não só como formação, mas por suas repercussões práticas), o curso de direito, no Brasil, é, senão o pior, um dos que pior oferecem uma formação para pesquisa: desde o estímulo a vícios diversos até a fragilidade dos métodos jurídicos, passando pela falta quase completa de formação científica (argumentação rigorosa, noções de lógica, estatística, uso de programas de planilhas e gráficos, metodologias de análise de políticas, etc.). Poucas faculdades de direito do país se saem melhor nesse quesito, como as escolas de direito da FGV. Para a imensa maioria delas, a alternativa imediata para o interessado em pesquisa é se aproximar de outras áreas. A formação jurídica típica acaba gerando, com sorte, pesquisadores amadores e, em muitos casos, trabalhos que parecem pitorescos comparados aos trabalhos de áreas tipicamente científicas.

Um estudante de direito pode (basicamente) considerar três amplas opções de carreira: concursos públicos, advocacia privada, e docência e pesquisa. Após cinco anos de graduação, se o estudante tiver se dedicado à aprovação em concursos, ele pode, em pouco tempo, ocupar um cargo público que lhe renda mais (em alguns casos, muito mais) de 5.000,00 reais garantidos pelo resto de sua vida – digamos, como oficial de justiça ou analista judiciário, e mais tarde como juiz, defensor público, procurador ou promotor. Outra possibilidade é ter se dedicado à advocacia privada, em estágios relevantes, construção de networking, e ganho de conhecimento prático: após a faculdade, ele ingressará numa boa firma de advocacia, na qual pode ter ganhos próximos a 3.000,00 reais (dependendo da capital do país), com chances de eventuais bônus, e com ótimas perspectivas de crescimento, podendo, em alguns anos, ter rendimentos superiores aos melhores salários do serviço público. E aquele estudante dedicado a alimentar sua curiosidade, com gosto para fazer perguntas e ensinar? Ele tem como opção, após a faculdade, entrar num mestrado, que, se tiver a sorte de obter logo uma bolsa, lhe renderá por dois anos 1.500,00 reais para fazer pesquisa (daquele jeito), o que, no Brasil, sequer é visto como um trabalho (inclusive pelo governo); a bolsa também impede que o estudante/bolsista/pesquisador tenha vínculos de trabalho, a não ser como docente, pois se espera que ele se dedique realmente à pesquisa; portanto, após sete anos arduamente dedicados à sua formação educacional e à pesquisa, o então mestre conta com a possibilidade de ser contratado por faculdades privadas, podendo vir a ter rendimentos próximos dos R$ 3.000,00, a depender de quantas turmas vier a assumir; outra possibilidade é tentar concursos para professor assistente (que exige só mestrado), mas vai esbarrar na dificuldade de ter de superar candidatos que já são doutores; a terceira, e mais óbvia para quem quer ser pesquisador, é fazer um doutorado por pelo menos mais quatro anos, cuja bolsa hoje é de 2.200,0 reais; outro fator é que, em busca de um bom programa de mestrado ou doutorado, o aspirante a pesquisador pode querer sair do estado onde mora, o que encarece suas despesas; nesse tempo, ele continuará sendo tratado como alguém que “só estuda e não trabalha”, não só pelas pessoas ao seu redor, mas também pelo próprio governo. E quais são as perspectivas para quem, após pelo menos onze anos (“desempregado”) dedicados ao estudo, à pesquisa e ao ensino? O agora doutor em direito, em torno dos 30 anos de idade, será um desempregado altamente qualificado, com pouca experiência na advocacia, que terá como melhor perspectiva entrar numa universidade pública – mas somente após ser aprovado num concorrido processo seletivo, o que pode tardar a acontecer, se vier a acontecer. A vantagem da universidade pública está na estabilidade do emprego, que rende em torno de 6.000 reais líquidos, e, principalmente, na possibilidade de fazer pesquisa. Abdicando um pouco disso, o doutor em direito pode se contentar com a possibilidade de lecionar em faculdades privadas e ter rendimentos próximos a esse valor também – apenas com mais turmas. Agora, finalmente ele está trabalhando – ou pelo menos até ouvir a pergunta sobre se ele “só dá aulas ou também trabalha?”, o que dá uma ideia da valorização da profissão docente no país, mesmo em nível superior.

Na linha desta postagem, veja o ótimo artigo publicado na Revista Galileu: A ciência no Brasil é bancada pelos pais.


sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Dicas práticas para fazer pesquisa séria em direito


Em outra postagem, falei sobre erros amadores na produção acadêmica. Em uma série de duas postagens, ataquei a ideia de pesquisa puramente jurídica, a fim de desestimular a associação entre escrever trabalhos doutrinários e fazer pesquisa em direito – ver parte 1 e parte 2. A fim de apresentar novas possibilidades, mostrei exemplos de pesquisas de ponta em direito – ver aqui e aqui. Nesta postagem, baseado em minha própria experiência, darei algumas dicas práticas para quem quer fazer pesquisa séria em direito seguindo esse viés interdisciplinar. Digo “séria” para diferenciar de trabalhos amadores, e isso ficará mais claro adiante.

1. O treinamento jurídico, na maior parte das escolas de direito do Brasil, é bastante precário para efeito de pesquisa. Por isso, se um estudante ou professor de direito deseja pesquisar seriamente, de início uma das melhores alternativas contra esse problema é tentar se aproximar de pesquisadores de outros departamentos da própria universidade, buscando parcerias. Um estudante de direito pode integrar-se a um grupo de pesquisa do departamento de sociologia ou ciência política, a fim estudar a relação entre a produção legislativa penal e a criminalidade em dado estado ou cidade. Esse estudante pode eventualmente conseguir ser bolsista de iniciação científica e ser orientado por um professor desse departamento. Já professores de direito têm vantagens institucionais e podem até mesmo buscar abrir, junto ao CNPq, grupos de pesquisa interdisciplinares, agregando estudantes e professores de vários departamentos diferentes. Por exemplo, um grupo de pesquisa cujo tema geral seja “Direito e Sociedade da Informação” pode ter linhas de pesquisa que incluam pesquisadores de sociologia, especializados no entendimento das implicações sociais de uma sociedade tão informatizada como a nossa; pode agregar pesquisadores de ciência da computação, que podem ajudar a criar soluções computacionais para problemas da área jurídica; entre outras possibilidades de linhas de pesquisa e parcerias. A interação entre pessoas de diferentes campos pode ser extremamente frutífera.

2. Se você é estudante de direito e tem algum interesse em pesquisa, busque fazer iniciação científica, mesmo se não conseguir bolsa. Ainda que não venha a fazer mestrado ou doutorado no futuro, a experiência com pesquisa será de utilidade geral e também vai lhe ajudar a decidir se realmente gosta daquilo. Porém, para não ter uma ideia equivocada do que é pesquisa, siga a primeira dica. Caso contrário, você correrá o risco de ser pessimamente orientado por um professor de direito que nem faz ideia do que seja pesquisa.

3. Alguns bons estudantes de direito, indignados com a má qualidade do curso, podem querer criar grupos de estudo e até levar adiante pesquisas por conta própria, ignorando o orientador relapso. Embora haja aí uma atitude bem intencionada e uma demonstração de iniciativa, há grande risco de incorrer em amadorismo: grupos de estudo totalmente desorientados por especialistas ou pelo menos por um professor mais bem entendido do assunto enfrentarão dificuldades diversas, desde a escolha da bibliografia até o entendimento e interpretação de conceitos e argumentos elementares; já a pesquisa autossuficiente, desorientada (mesmo que haja um orientador formal), também enfrentará esses problemas e ainda correrá o risco de eventualmente produzir publicações e apresentações amadoras. Nesse contexto, as discussões dos grupos acabam num nível muito superficial, em que cada um pode ter uma opinião (a depender do tema), e ninguém sabe dizer o estado da arte em que se encontram os debates. Esses pesquisadores autossuficientes (de graduação, mestrado ou doutorado) terão um estresse imenso, se quiserem tentar produzir algo de valor, e muito provavelmente produzirão um trabalho cheio de lacunas e erros, que um especialista facilmente identificaria e poderia corrigir.

4. Tenha perguntas. Pode ser uma única pergunta, que certamente pode se desdobrar em outras. As pesquisas acadêmicas buscam alcançar objetivos ou responder perguntas. A partir delas coisas como as abordagens, métodos e dados são escolhidos, porque essas coisas servem para responder as perguntas – embora exista uma discussão complicada sobre o fato de que algumas perguntas só fazem sentido dentro de um contexto teórico específico, mas isso não vem ao caso agora. Por exemplo, eu fiz uma pequena pesquisa, que incluí em minha dissertação, que tentava responder o seguinte: “Hoje a produção científica brasileira da Área do Direito adquiriu inserção e respeitabilidade internacionais”? Esse enunciado foi tirado do “Documento de Área” da Avaliação Trianual (2013) da Capes. Para responde-la, traduzi a pergunta em outras, mais facilmente verificáveis: Existe elevado número de publicações e participações de pesquisadores brasileiros da área de direito no exterior, em periódicos internacionais reconhecidos? Existem muitas citações feitas por pesquisadores estrangeiros de trabalhos publicados por pesquisadores brasileiros em periódicos reconhecidos? Note que a pergunta inicial, um tanto vaga, adquiriu um pouco mais de exatidão na medida em que agora podemos procurar por dados empíricos e numéricos (a quantidade de publicações e citações).

VEJA TAMBÉM: Diminuindo as deficiências da formação jurídica para pesquisa

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Erros que professoras(es) devem evitar

Há alguns erros comuns que as professoras e os professores devem buscar evitar em seu trabalho. E as razões do porquê são erros devem ficar claras abaixo. Julgo que todos eles são bem óbvios, mas infelizmente me parecem ser mais recorrentes do que deveriam, e por isso escrevo esta postagem.

1. Atrasar-se com frequência: No Brasil, as pessoas são em geral muito tolerantes com atrasos, e isso repercute no ensino, principalmente no ensino público, pois o professor com estabilidade sabe que não vai perder seu emprego por se atrasar, da mesma forma que nós pensamos que não vamos perder nossos amigos por nos atrasarmos aos compromissos marcados. Porém, o professor que se atrasa com frequência está desrespeitando quem o paga (empresa ou contribuintes), ao prestar um serviço “menor” do que o combinado, está desrespeitando seus alunos e alunas, além de estar perdendo tempo precioso de aula. Digo, “com frequência”, porque eventuais atrasos podem ocorrer por causas alheias à vontade de qualquer pessoa. Obviamente, alguns atrasos recorrentes são justificáveis, como o professor que precisa sair de uma aula para outra distante que começa logo em seguida. Nesses casos, o planejamento da aula deve levar esses atrasos em consideração.

2. Fazer perguntas vagas sobre assuntos específicos: Se o professor pergunta o que um aluno acha de uma questão específica de uma área, sem dar maiores pistas como background, sem criar um contexto para discussão, isso faz parecer que o professor não sabe do que está fazendo. Uma vez presenciei uma professora perguntar a um aluno: “Habermas diz que a verdade é o consenso. O que você acha, Thiago? Acha que é isso mesmo?”. O aluno deu a resposta mais adequada possível: “Professora, Habermas pesquisou anos para dizer isso, e daí eu chegar do nada e opinar fica meio complicado, né...”.

3. Não dominar o assunto: Embora seja prática comum, no Brasil, professores darem aula das mais diversas matérias, mesmo que elas não tenham feito parte da sua especialidade, é esperado no mínimo que o docente saiba do que está falando: deve poder ao menos explicar o assunto da disciplina, de acordo com os conhecimentos atuais da área, e poder indicar referências para o aprofundamento do assunto. Em regra, o domínio do assunto é refletido na fluência e na clareza da explanação.

4. Faltar às aulas sem dar satisfação alguma: Isso pode parecer óbvio e trivial, mas eu tenho conhecimento (por experiência própria e por relatos) de professores que, por alguma razão, faltam às aulas, e não dão quaisquer explicações, nem avisos prévios. O mínimo que se espera é que o professor avise à turma (se possível, muitos dias antes, como em caso de ter de ir para um evento acadêmico) e explique sua ausência. Obviamente, excluo aqui, como nos outros casos, situações excepcionais, como envolvimento em acidente que vitima o professor gravemente.

Para algumas dicas importantes, ver a postagem o Manual Ilustrado da Docência, do blog do professor Adonai Sant’Anna.

domingo, 26 de junho de 2016

Pesquisas de Ponta em Direito – Parte 2

Continuando a série de postagens sobre pesquisas de ponta na área de direito (Parte 1 aqui), trago novos exemplos que merecem nossa atenção – dessa vez internacionais.

Um exemplo notável de grande área interdisciplinar é a interseção entre direito, lógica, inteligência artificial (IA) e informática, cujas repercussões práticas prometem mudar radicalmente a profissão jurídica. A primeira conferência internacional sobre direito e IA ocorreu em Boston, EUA, em 1987, isto é, bem antes da rede mundial de internet. De lá para cá a IA tem avançado: o escritório de advocacia Hodge Jones & Allen, em Londres, Inglaterra, é um dos pioneiros em usar um modelo preditivo para o resultado de casos, a fim de avaliar a viabilidade de dar andamento a processos jurídicos; a empresa forneceu a Andrew Chesher, professor da University College London, uma série de dados sobre os resultados de 600 casos concluídos em doze meses; ele usou uma combinação de técnicas estatísticas para analisar os fatores que contribuem para que os casos sejam ganhos ou perdidos, os danos assumidos pelos requerentes em casos de sucesso e os custos recebidos pela empresa. Não muito longe dali o Agent Applications, Research and Technology (Agent ART) Group, da Liverpool University, está desenvolvendo formas de aplicar a IA ao campo jurídico, como o processamento de textos, busca e análise de dados, automatizando a rotina de tarefas jurídicas, tornando sua execução mais rápida e barata.[1]

Os estudos em direito, lógica, IA e informática ganharam tanto relevo, que a Stanford University possui um centro de estudos apenas para isso: The Stanford Center for Legal Informatics (CodeX), operado conjuntamente pela Stanford Law School e pelo Stanford Computer Science Department.[2]

Outro campo interdisciplinar relacionado ao departamento de direito e à profissão jurídica que tem se mostrado produtivo é o Law and Economics Movement ou Análise Econômica do Direito[3]. A ideia central é aplicar os conceitos e os estudos econômicos, incluindo ferramentas matemáticas, para compreender, descrever e melhorar as práticas jurídicas. A ideia geral da maioria das análises econômicas é traçar as consequências de assumir que as pessoas são mais ou menos racionais em suas interações sociais – em regra, buscando seus objetivos e tentando maximizar seus benefícios e minimizar seus custos. No caso de atividades jurídicas, essas pessoas podem ser criminosos, promotores, partes no processo, contribuintes, auditores fiscais, trabalhadores – ou até estudantes de direito. Ou seja, análises econômicas vão muito além de dinheiro e capitalismo; elas são amplas o bastante para serem uma investigação do comportamento humano, razão pela qual têm afinidades com a teoria dos jogos. As pesquisas nessa área já são tão reconhecidas, que a The University of Chicago mantém um periódico dedicado apenas ao campo, The Journal of Law and Economics[4]. A faculdade de direito dessa universidade, inclusive, se destaca por ter um programa interdisciplinar que assume explicitamente que o estudo do direito não é uma disciplina autônoma: desde o primeiro dia de aula os estudantes dessa instituição tem sua atenção dirigida a insights das ciências sociais, das humanidades, e das ciências naturais[5].

Por fim, quero mencionar uma última área de interseção: direito e neurociências. Financiada pela John D. and Catherine T. MacArthur Foundation, o Research Network on Law and Neuroscience, da Vanderbilt University, é um centro de pesquisa que investiga problemas que se encontram entre a neurociência e a justiça criminal: 1) investiga estados mentais relevantes ao direito e processos de tomada de decisão em advogados, testemunhas, jurados e juízes; 2) investiga em adolescentes a relação entre o desenvolvimento do cérebro e as capacidades cognitivas; e 3) avalia a melhor forma de fazer inferências sobre os indivíduos a partir de dados neurocientíficos baseadas em grupos[6]. Outras questões desse campo interdisciplinar incluem: (a) Trata-se de uma legítima defesa alegar que um tumor ou uma lesão cerebral atenua um crime? (b) como os cérebros de menores diferem dos cérebros de adultos em sua capacidade de tomada de decisões e controle dos impulsos? (c) pode a neurociência informar normas de condenação, oferecendo uma melhor previsão de reincidência? (d) podem as novas tecnologias de imagem cerebral ser aproveitadas para novos métodos de reabilitação? (e) quem deve ter acesso a informações sobre nossos cérebros? (f) como deve o júri avaliar a culpabilidade quando a maioria dos comportamentos são movidos por sistemas inconscientes do cérebro?[7] Essas e outras questões nada triviais e bastante complexas estão muito longe de serem respondidas por qualquer pesquisa que tenha (até hoje) se apresentado como especificamente jurídica, como a dogmática jurídica, e, no entanto, são perguntas da mais alta relevância para a sociedade e para o direito.




[1] CROSS, Michael. Role of Artificial Intelligence in Law. Published February 19, 2015, em <http://raconteur.net/business/time-for-technology-to-take-over>. Acesso em 5 de fevereiro de 2016.
[2] Detalhes sobre o centro de estudos no site da instituição: <http://codex.stanford.edu/>. Acesso em 5 de fevereiro de 2016.
[3] POSNER, Richard. Values and Consequences: An Introduction to Economic Analysis of Law. In: JOHN M. OLIN LAW & ECONOMICS WORKING PAPER NO. 53, 1988. Disponível em <http://www.law.uchicago.edu/files/files/53.Posner.Values_0.pdf>. Acesso em 5 de fevereiro de 2016.
Mais sobre a análise econômica do direito, os verbetes The Economic Analysis of Law e Law and Economics, respectivamente, na Stanford Encyclopedia of Philosophy e na Internet Encyclopedia of Philosophy, cujos endereços, respectivamente, são: <http://plato.stanford.edu/index.html> e <http://www.iep.utm.edu/>. Acesso em 5 de fevereiro de 2016.
[4] Detalhes sobre o periódico em <http://www.journals.uchicago.edu/toc/jle/current>. Acesso em 5 de fevereiro de 2016.
[5] Detalhes sobre o programa interdisciplinar da Universidade de Chicago: <http://www.law.uchicago.edu/projects/interdisciplinary>. Acesso em 5 de fevereiro de 2016.
[6] Detalhes sobre o Research Network on Law and Neuroscience: <http://www.lawneuro.org/>. Acesso em 5 de fevereiro de 2016.
[7] EAGLEMAN, David M. Neuroscience and the law. Houston Lawyer 16.6 (2008): 36-40. Disponível em <http://www.thehoustonlawyer.com/aa_mar08/page36.htm>. Acesso em 5 de fevereiro de 2016.

domingo, 19 de junho de 2016

Pesquisas de Ponta em Direito – Parte 1

Com atraso, trago a primeira postagem da série que havia prometido sobre pesquisas de ponta na área de direito. Essas pesquisas se caracterizam de um modo geral por serem muito diferentes de trabalhos doutrinários ou de dogmática jurídica, e por terem claro viés interdisciplinar, deixando de lado a preocupação sobre se realmente são ou não “pesquisas jurídicas”. Quando digo que são pesquisas de ponta, quero dizer que são realizadas nas principais instituições de ensino e pesquisa do mundo (inclusive no Brasil) como uma aposta do que será o futuro ou como uma tentativa de colaborar na solução de questões importantes para a sociedade.

Talvez os estudos doutrinários sempre tenham seu lugar num mundo em que exista a questão sobre a interpretação jurídica correta, mas, como aponta Richard Posner (já citado aqui e aqui), eles estão em declínio há algum tempo e, em algum momento, podem vir a ser apenas um resíduo de um passado em que ingenuamente se acreditava na autonomia de uma entidade misteriosa chamada “direito”.

No Brasil, as Escolas de Direito da Fundação Getúlio Vargas (uma em São Paulo e outra no Rio de Janeiro) se destacam quando o assunto é pesquisa de ponta em direito, fazendo uso de suporte interdisciplinar facilitado pelas outras faculdades desta Fundação. Um exemplo é o projeto “Supremo em Números”, da Escola de Direito da FGV RJ; ele faz amplo uso de tecnologias de computação para melhor compreender informações em larga escala junto à produção de dados empíricos; idealizado pelo professor Pablo Cerdeira em 2010, o projeto surgiu como uma iniciativa de aliar habilidades jurídicas e informáticas para produzir dados inéditos sobre o Supremo Tribunal Federal – uma proposta especialmente relevante no contexto brasileiro atual, no qual o poder judiciário em geral e o STF em particular tem atuado muito mais do que décadas atrás e em questões que repercutem pelo país inteiro tanto nos veículos de comunicação quanto na vida das pessoas: alguns exemplos são as decisões de casos como o da reserva Raposa Serra do Sol, da Lei de Imprensa, dos Fetos Anencefálicos, da Lei da Ficha Limpa, das Cotas Raciais, da União Homoafetiva e do Mensalão, que deixam claro que as decisões judiciais possuem um grande impacto político.

O “Projeto Supremo em Números” tem como foco de análise de tais decisões uma perspectiva quantitativa. Ele também serve de modelo e complemento para pesquisas semelhantes relativas a outras esferas do Judiciário, como o relatório “Justiça em Números” do Conselho Nacional de Justiça. Isso permite a observação do comportamento agregado das instituições componentes do poder judiciário, permitindo inferências a partir de padrões identificáveis em um grande número de decisões judiciais – padrões que não podem ser identificados em análises qualitativas de textos ou decisões isoladas. O projeto atenta para dados sobre andamentos dos processos, sua duração, seus atores, suas origens geográficas, seu assunto e as regularidades e correlações entre esses e outros elementos.

Esse tipo de estudo quantitativo apresenta dificuldades específicas, sobretudo porque: (a) os órgãos de cúpula do poder judiciário brasileiro julgam um número muito alto de casos por ano, às vezes ultrapassando centenas de milhares, diferentemente da maioria dos países nos quais esse tipo de estudo é mais desenvolvido. Isso exige o desenvolvimento de novas e diferentes técnicas de análises, baseadas em grande volume de dados; (b) muitas vezes os dados dos processos ou não estão disponíveis ou são muito pouco estruturados, com incongruências que não permitem uma análise de massa sem prévio trabalho de consolidação. Exemplos de estudos quantitativos sistemáticos do poder judiciário já são encontradas nos Estados Unidos, na União Europeia e no México, onde tais iniciativas partem não somente de atores governamentais, mas também de atores não governamentais, como universidades, por exemplo.

No Brasil, os bancos de dados do gênero tendem a ser desenvolvidos de forma ad hoc, para pesquisas específicas. Não há bancos de dados completos, abrangentes e sistemáticos sobre como vem decidindo o STF desde 1988. Com o objetivo de preencher essa lacuna no Brasil, a FGV está realizando esse extenso projeto, através da Escola de Direito do Rio de Janeiro e com o apoio da Escola de Matemática Aplicada. O objetivo do Supremo em Números, em oposição ao modelo de análise qualitativa mais difundido, é fundamentar quantitativa e estatisticamente discussões sobre a natureza, a função e o impacto da atuação do STF na democracia brasileira. O projeto realiza análises a partir de um banco de dados com cerca de 1,4 milhão de processos, mais de 1 milhão de decisões, aproximadamente de 15 milhões de andamentos, centenas de milhares de advogados e mais de 1 milhão de partes, desde 1988 até os dias de hoje.

O projeto “Supremo em Números” é amplo e interdisciplinar, contando com a participação de juristas, engenheiros de softwares, programadores e designers, fugindo totalmente das pesquisas usuais em direito – centradas em análises de casos e da legislação sob a perspectiva da dogmática jurídica e feitas exclusivamente por juristas.

Porém, esse não é o único projeto desse tipo na FGV: sob a coordenação de Antônio José Maristrello Porto, o projeto “O Superendividamento no Brasil”, que começou em 2014, tem por objetivo formular uma definição conceitual do superendividado no Brasil, o que orientará a realização de um levantamento quantitativo sobre o tema, acompanhar, durante a vigência do projeto, a evolução do superendividamento do consumidor de crédito brasileiro, realizar estudos, da perspectiva regulatória, das variáveis identificadas como determinantes para o superendividamento e, por fim, fornecer informações para a formulação de políticas públicas e regulação de acesso ao crédito. Esse projeto é desenvolvido por todos os pesquisadores do Centro de Pesquisas em Direito e Economia da FGV (CPDE) em parceria com pesquisadores da University of Ilinóis at Urbana-Champaign através do Prof. Robert Lawless.

Mais projetos poderiam ser citados, mas me limitarei a mencionar que a Escola de Direito da FGV RJ conta com quatro centros de pesquisa cujos trabalhos são claramente interdisciplinares sobre temas fundamentais ao país: o “Centro de Justiça e Sociedade”, o “Centro de Tecnologia e Sociedade”, o “Centro de Direito e Meio Ambiente”, e o “Centro de Pesquisa em Direito e Economia”. Como nenhuma outra faculdade brasileira de direito (de que eu tenha conhecimento) está fazendo, as faculdades de direito da FGV têm desenvolvido projetos de pesquisas amplos, sistemáticos, e de importância para o Brasil, com profissionais, estudantes, professores e pesquisadores de áreas diferentes, e que contam, em alguns casos, com parcerias internacionais. Nisso a FGV acompanha tendências mundiais que descreverei em outras postagens dessa série.

Leia a Parte 2 aqui.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Anacronismo e ensino jurídico


O texto a seguir é de autoria de Aimée Feijão, graduada e mestre em direito pela Universidade de Brasília (UnB). Ela trata de alguns temas que já foram aqui vagamente mencionados nas postagens sobre o “Professor Anacrônico” e outras. Trata-se de uma parte adaptada da dissertação de mestrado da Aimée Feijão. Em breve, como prometi na postagem sobre doutrina jurídica e pesquisa em direito, farei uma postagem descrevendo algumas pesquisas de ponta no Brasil e no mundo na área de direito.
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Por Aimée Feijão

A concepção do conhecimento como algo estático e fragmentado não se coaduna com o contexto socioeconômico e cultural em que nos encontramos inseridos; este se rege pelos imperativos da dinamicidade[1], o que demanda um conhecimento também dinâmico. A complexidade da vida moderna é incompatível com um modelo de ensino que perpetua a compartimentalização do conhecimento. Um ensino fragmentado atrofia as possibilidades de compreensão e reflexão sobre a totalidade dos fenômenos sociais. Existe, segundo Edgar Morin, uma inadequação profunda entre a sectarização dos saberes entre disciplinas e a realidade, que nos apresenta problemas polidisciplinares[2].

Esse cenário é incompatível com um método de ensino focado na mera transmissão de conhecimentos por parte do professor seguida pela apreensão do máximo possível de informações e dados pelos alunos.

Se essa incongruência entre a realidade e a forma como se produz o conhecimento é observada nas ciências exatas, muito mais notável o é nas ciências humanas, cujo objeto encontra-se em constante mutação, em virtude de este consistir em uma conexão entre vida, expressão e compreensão. A humanidade, afirma Wilhelm Dilthey, enquanto condição de objeto das ciências humanas, “não surge senão na medida em que estados humanos são vivenciados, em que esses estados ganham expressão em manifestações vitais e essas expressões são compreendidas. Com efeito, essa conexão existente entre vida, expressão e compreensão não abarca apenas gestos, expressões faciais e termos por meio dos quais os homens se comunicam [...] A unidade psicofísica da vida também é conhecida por si mesma por meio da mesma relação dupla entre vivenciar e compreender. [...] Desse modo, a conexão entre vivência, expressão e compreensão mostra-se por toda parte como o próprio procedimento, por meio do qual a humanidade existe para nós como objeto das ciências humanas. As ciências humanas estão fundadas, pois, nessa conexão entre vida, expressão e compreensão” [3].

Essa conjunção de fatores é sentida sobremaneira na ciência jurídica, visto que as relações humanas, sobre as quais o Direito pretende exercer certa normatividade, se desenvolvem de forma complexa, exigindo do profissional que porventura atue nessa área a habilidade de agir com sensibilidade e senso crítico diante das variadas situações que venham a se desenvolver.

Para atender a essa expectativa, a educação deve ter como propósito desenvolver nos estudantes a competência e habilidade de aplicar seus conhecimentos em meio à dinamicidade e instabilidade das circunstâncias fáticas, de desenvolver o que Knowles chama de “lifelong self-directed learning” [4] ou aprendizado contínuo.

Na seara do ensino jurídico, constata-se uma insatisfação de longa data com o método tradicional de ensino, o que suscita discussões a respeito da estruturação curricular e metodológica do curso.

Atualmente a maioria das faculdades de Direito no Brasil reproduz, ainda que de forma sutil, o ensino originado na Universidade de Bolonha[5], que seguia o modelo da lectio escolástica[6]. Nessa relação educacional, o estudante posicionava-se de forma passiva frente ao professor, presumidamente detentor de todo o conhecimento; cabia ao discente, portanto, apenas absorver os ensinamentos do grande mestre. Observa-se, ainda, que o foco do ensino estava na lei, possuindo mínima conexão com a realidade social.

Mais de nove séculos se passaram e a educação jurídica brasileira ainda possui resquícios do método escolástico. Pautada em um modelo tradicional, confere ao docente o papel de principal ator do processo educacional, peça transmudada em monólogo que transforma os alunos em meros expectadores muitas vezes desinteressados.

O quadro em tela constitui o reflexo da generalizada percepção formalista do Direito. O “formalismo jurídico” é uma categoria amplamente utilizada na Sociologia Jurídica, na História do Direito e na Filosofia Jurídica e não existe para ela uma conceituação fechada[7]. Nesse esteio, valemo-nos do conceito esboçado por Daniel Bonilla[8], segundo o qual o formalismo jurídico identifica sistema jurídico com a lei; considera que o sistema normativo é completo, coerente e fechado; capaz, portanto, de fornecer respostas únicas a todos os problemas apresentados pela comunidade política.

A educação jurídica formalista, então, reforça e reproduz o conceito de direito formalista, tendo como pilares o enciclopedismo curricular, a memorização e o conceitualismo.  Os currículos são compostos por um número alto de matérias obrigatórias de modo a garantir que os estudantes conheçam todas as criações do legislador. Iguala conhecer Direito à capacidade de reproduzir na íntegra e acriticamente os conteúdos normatizados[9].

Imperativa se faz a mudança desse quadro, vez que a atuação do jurista é mais complexa do que a memorização de textos legais. O interpretar da norma jurídica não se esgota na mera reprodução de máximas imutáveis e abstratas, mas é atividade que se perfaz a partir da análise da norma abstratamente concebida face às peculiaridades do caso concreto. O instrumento normativo desvinculado de um contexto fático apresenta inúmeras potencialidades. Assim sendo, cabe ao jurista conformar a norma a um de seus muitos significados para a solução do caso concreto ou até mesmo questionar as próprias bases morais, culturais e políticas que legitimam essa norma. Essa atividade hermenêutica extremamente complexa não é possível ser realizada com base na simples reprodução de conhecimentos. Para essa análise crítica, é necessário um ensino também crítico e desafiador, que estimule o estudante e o torne o centro do processo educacional; a partir desse empoderamento discente, contribuir-se-á para a formação de profissionais capazes de analisar criticamente o meio social e as estruturas jurídicas que tentam discipliná-lo, provendo soluções coerentes à resolução do caso concreto com o qual se depare.



[1] Atestando essa realidade, Zygmunt Bauman elegeu a fluidez como a principal metáfora da modernidade: Cf. BAUMAN “[os fluidos] diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com facilidade[...], não fixam o espaço nem prendem o tempo[...]os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-la[...] Essas são as razões para considerar ‘fluidez’ ou ‘liquidez’ como metáforas adequadas quando queremos captar a natureza da presente fase, nova de muitas maneiras, na história da modernidade ” In: Modernidade líquida. Pg. 8-9.
[2] MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Trad. Eloá Jacobina. 8a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. Pg.13.
[3] DILTHEY, Wilhelm. A construção do mundo histórico nas ciências humanas. Tradução Marcos Casanova. São Paulo: Editora Unesp, 2010. Pg 28-29.
[4] “Lifelong learning”, termo que traduzimos livremente como “aprendizado contínuo”, é apresentado por Knowles como o princípio fundamental de toda a educação; este consiste na habilidade de buscar o conhecimento de forma autônoma e independente. No contexto atual de fluidez da produção de conhecimento, insuficiente se mostra a mera apreensão de conhecimento, vez que este se encontra em constante mutação; o importante é desenvolver a competência de “aprender a aprender”.  
[5] BERMAN, Harold J. Direito e revolução: a formação da tradição jurídica ocidental. São Leopoldo: Unisinos, 2006. Pg.166.
[6], Ver BERMAN In: Direito e revolução. pg. 167-169; e HEGEL In: Princípios da filosofia do direito. pg. 25-26.
[7] Duncan Kennedy. Legal Formalism. In: SMELSER, Neil; BALTES, Paul (ed). Encyclopedia of the social & behavioral sciences. vol 13. Elsevier: 2001. Pg 8634.
[8] BONILLA, Daniel. El formalismo jurídico, la educación jurídica y la práctica profesional del derecho en latinoamerica. In Helena Olea (ed.). Derecho y pueblo Mapuche, Universidad Diego Portales, Chile, 2013. Pg. 262.
[9] Idem.